terça-feira, 19 de junho de 2018

Esse é um texto sobre a minha mãe

Eu comecei a ler um livro em que o filho foi em busca da histórias dos pais, presos na ditadura. Ele avisa que é contado em ordem não cronológica (e esse texto também não). Os pais ainda estão vivos e ele vai em busca desse passado e de respostas de antes da sua própria vida começar.

Isso me fez pensar logo ao ver o livro a venda.

Mas esse texto em nada tem a ver com o livro ou a ditadura. Esse é um texto sobre a minha mãe. E ele tem rodado na minha cabeça por algum tempo, de formas e tempos diferentes.

O livro me fez pensar o quanto eu também sempre tive o desejo de conhecer a história antes de mim. E como seria após.

Minha mãe faleceu com apenas 30 anos. Eu tinha seis meses, minha irmã 4 anos. Não tenho foto com ela, a não ser aquela em que estou na sua barriga e minha irmã a olha com um misto de alegria e admiração, que talvez eu nunca tenho visto mais nela.

É difícil escrever sobre isso, tentei uma vez semi adolescente e me marcou por ter sido tachado como uma forma de chamar atenção e terem dó. Acho que isso me marcou, e hoje adulta, eu penso que talvez tenha sido. E então nunca mais o fiz. Ainda hoje, escrevendo sinto esse misto, como se eu tivesse fazendo para tal fim.

Mas isso é uma outra história

Esse é um texto sobre a minha mãe.

Ela sempre permeou meu imaginário, como ela era, qual era seu jeito? E tentava não cair na armadilha de criar uma super heroína, insuperável.

Eu tive sim uma outra mãe, que me criou. Mas esse é uma outra histórias.

Esse é um texto sobre a minha mãe.

Uma mulher com planos, não sei se muitos. Mas sei que um era certo, abandonar a carreira de gerente de conta em um banco (a primeira ou uma das primeiras mulheres a ocupar ao cargo em Santos, pelo que me contaram) para que com o nascimento da segunda filha pudesse cuidar direito das duas. A vida é irônica.

Mas isso é outra história. Essa é sobre a minha mãe.

Eu queria saber coisas simples dela, como era a sua risada? A gente se parecia além de algumas características físicas óbvias para alguns?

Essa imagem foi sendo resgatada ao longo de muitos anos e com muitos buracos. Falhas de memórias e de coisas que se perdem no tempo.

Uma vez, perguntei para minha tia (sim, sempre fui muito próxima da família dela): Tia, como era a risada da minha mãe? Era escandalosa como a minha ou como a da minha irmã?

Ela parou, e em uma mistura de surpresa e desapontamento me disso: Nossa, eu não lembro Mi...não lembro. Fiquei chateada, queria tanto saber mais.

E hoje, 10 anos depois de ter perdido a minha própria irmã, percebo que não lembro mais da risada dela. Eu tenho a imagem dela sorrindo, mas o som ficou perdido pelo caminho.

Mas, ahhhh, como eu ficava feliz quando ações simples minhas arrancavam um: nossa, a sua mãe fazia igual!

Essa curiosidade, vontade, a força do DNA, pode chamar do que quer que seja, sempre esteve ali. Talvez como uma forma de conhecer mais a si mesmo. De saber mais sobre aqueles que vieram antes de nós e teceram o início de tudo.

Quando criança eu imaginava que ela podia ter fugido e um dia voltaria, mas também rezava e dizia: cuida da Jú, que eu me viro. Numa forma até de pedir ajuda para eu não ter que lidar com aquilo.

Mas isso é uma outra história.

Esse é um texto sobre a minha mãe.

Sobre a qual não sei o tom de sua risada, mas sei que tinha os ares de irmã mais velha e um humor que flertava com o irônico e que quando arrotava, mesmo sendo criada em uma família que a época tinha pompa e circunstância, fala "eeeeee chico", uma referência a um porco imaginário que vivia embaixo da mesa. Era também de gênio forte e dotada de ciúmes.

Ela foi cedo. Pelo que contam, parece que foi se despedindo... das filhas. Cada um vai contando um pedaço. Tive pouco contato. Ela já ficava em outra cidade para se cuidar. Não posso imaginar o que deve ter sido.

Sei que se negou a tirar uma foto que tanto insistiram, ela já com cicatrizes que nunca curaram. Registraram mesmo assim. E em um tempo de filme e revelação, a surpresa da foto queimada bem em seu rosto.

Essa não é uma história de lamento. É um texto para enaltece-lá.

Não sei se são as leituras espíritas, mas volta e meia o pensamento nela volta a rodear.

Uma vez, em 2008, estava buscando voltar para a minha área de trabalho. Surgiu a oportunidade de uma entrevista em São Paulo. Eu vim, cheia de medo e emoção. Subindo as escadas rolantes do metrô Consolação eu me deparo com uma placa que está lá até hoje: "Nacional: O Banco que está ao seu lado".

Era o banco dela.

E até hoje sorrio e me emociono ao olhar para ela.