segunda-feira, 23 de março de 2015

Ela.

Ela se enfeitou.
Arrumou os cabelos e abrumou o rosto com os cosméticos que lhe caiam bem.

Olhou-se no espelho.
Sentia-se bem.

Registou o momento e o distribuiu por redes sociais e mensagens eletrônicas. Era para lhe dar mais segurança.
Beijou seus cachorros e saiu.

Se lançou na noite com esperança.
Sim! Aquilo tudo iria passar.
Era hoje!
Hoje acharia novas razões,
outros propósitos.
Tudo iria se apagar.

Bebeu e beijou novas bocas.
Como era de costume.

1, 2, 3, 4 da manhã.

E a roda gigante parou.
Lá embaixo.
Estagnou.

E ela parou.
também travou ali.
Mesmo rindo.
Como de costume.


Os sintomas são como de uma gripe bem forte. Dessas arrebatadoras. Que traz com ela os sussurros da alma. Sussurros que agora gritam.

Gritam em plenos pulmões naquele quarto vazio. Habitado somente por ela e pela gata, que lhe faz companhia. Lembrando, só de estar ali, que precisa de comida, água e limpeza na sua caixinha.

E ela o faz.

Por ela também. Mesmo que ninguém a lembre.
É ela que convence a si mesma. Faz mecanicamente o ato de comer, beber, lavar, a louça, o corpo, a alma.

"Definitivamente virei uma concha", pensa ela. Como o horóscopo falava há dias.

Mulher, 32 anos, capricorniana, concha.

Toma mais um gole na cerveja nova. Como uma sommelier, degusta a 1906 - Red Vintage,

É. A alma grita.
Em silêncio naquele quarto.

Por vezes, queria que alguém entrasse escancarando a porta, abrindo as cortinas e a tirasse dali.

Por outras, preferia assim.

Mulher, 32 anos, capricorniana, concha e sem paladar (porque, afinal, nada tinha gosto). Possui alguns filmes que poderiam ser considerados subversivos anos atrás. E livros. Muitos sem ler.

Abriu um, sobre o espírito, que lhe recomendaram no centro.
Bem apropriado para alguém como ela. De perguntas e respostas.

E ela tinha várias. Naquele corpo que parecia sem emoções.

Alguém muito atento percebeu. Antes mesmo dela confessar, de que tinha sim uma ali. Uma emoção perdida e misturada àquela inércia e choro sem sentimentos.

Uma.

Ia e vinha como as marés. Talvez, até as fases da lua a influenciasse

E ela deixava lhe tocar os pés de vez em quando. Em seguida, corria e a recolhia. Vestia outra máscara e saía. Sem ninguém saber, mas com ela bem guardada em outra camada da retina.


terça-feira, 17 de março de 2015

A caderneta

Eu tenho textos de caderneta que começaram a acumular em um certo caderninho. Ele serviria apenas para registrar impressões e divagações nessas novas paisagens.  

Mas os textos da caderneta não pertencem aqui. São por demais reveladores.

Foram escritos com caneta em punho, manchando o papel com amargura, angústias e descobertas vestidas de tinta azul.

Borboletas de diversas cores chegaram a cruzar por ali, batendo as asas nas lembranças, provocando uma corrente fria que vinha da base da espinha, cruzava o pescoço, fechava os olhos e voltava correndo até o estômago.

Por vezes, fragmentos de uma água salgada escapavam de seus esconderijos e antes que fossem descobertas pulavam rapidamente naquele papel. Queriam brincar, espalhando e fazendo navegar aquela letra azul, 
 
Algumas palavras reclamaram de um gosto amargo que respingou sobre elas, um líquido amarelo, completamente embriagante. Muitas gostaram, ficaram difusas e pediram mais.

Ah.. sim. tem alguns sobre você. 

Com pequenos detalhes, gostos, cheiros e frases inteiras.

Elas rodam, sabia? Percorrem todo o cérebro, que parece ficar bobo e perder todas as outras funções.

Sim! Elas rodam, dançam, rodopiam até! E me pregam peças. Como crianças danadas, correm e me deixam ali. Parada.

Sorrindo como uma boba olhando para um tela que meus olhos nem viam!

Um dia...

Um dia, nessa brincadeira, trombaremos. Você vai ver!

Também vou brincar de rodar. 

Não só pela minha imaginação. 

Vou escorregar pelos cadernos, blogs, páginas, cabeças, líquidos, risos, espasmos.

e pela tinta azul.



segunda-feira, 16 de março de 2015

Las contraturas

O trabalho,
o amor, 
o stress,
os vícios,
a ansiedade,
os medos,

a vida,
os espasmos,
os debates,
as esperas,
as angústias,
as conversas,
o choro perdido,

as crises,
os encontros,
os desencontros,
os dias seguintes,
o que poderia ter sido,
o que realmente foi,

as broncas, 
os gritos,
o que não foi dito,
o que não se sabe,
o meio do caminho.

o pensamento,
os devaneios,
os pesadelos,
os compromissos perdidos,

o modo de vida,
as pressões,
os prazos,
as contas,
e o vermelho.

todos embolados em cada músculo
dos meus dedos doloridos,
nas costas curvadas.
nos ombros para cima,
no maxilar travado,
nos roxos pelo corpo,
na apatia,
na falta de desejo,
e nas dores retorcidas. 



- Prepare-se. Isso pode acontecer.

- Como se prepara para algo assim?

- Tenha consciência e avise seu espírito: Cuidado, vai doer. Aguente firme.
E por favor, não tente fugir. Não adianta. Isso vai te alcançar meses depois. Saiba disso.

- E quando tem fim?

"Não tem", ela respondeu baixando os olhos, com um meio sorriso, cheio de cuidado. Seu rosto demonstrava as marcas do que aquilo tudo deixou.

Ela tomou outro gole de cerveja, com o olhar longe, fixo. Respirou fundo, olhou de volta, sorriu e continuou:

- Mas você acha serenidade no meio disso tudo. Uma hora você vai nadar de novo em águas tranquilas e vai sorrir. Acredite. Vai sorrir e dizer sozinha em voz alta "ei, obrigada por tudo. Sinto sua falta, muito e dói. Mas eu entendo, entendo tudo. Fica em paz, eu também sei lembrar sorrindo. você cuidou para deixar essas lembranças lindas para que eu conseguisse fazer isso".

Elas se olharam, rapidamente, para em seguida, cada uma se perder com o olhar longe, copo em mãos e milhares de pensamentos que flutuavam naquelas mentes incansáveis e exaustas.